sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O Absurdo Normal

o livro O Homem dos Dados, do psiquiatra de pseudônimo Luke Rhinehart, é o mais Dionisíaco que eu conheço (sim, ainda mais que os livros do Marquês de Sade), além de ser o melhor que já li.

o livro explora o ego, a liberdade e o acaso. lida particularmente com as maneiras pelas quais as sociedades modernas limitam a espontaneidade e criatividade dos indivíduos. o autor-protagonista vê a razão e a seriedade como uma forma de doença mental e a sua narrativa, que em muitos momentos desperta risadas apesar de sua profundidade, apresenta forte elementos niilistas. no tocante à moral, a ideia niilista central está na fala de um dos personagens de Os Irmãos Karamazov de Dostoiévski:

"Se Deus está morto, então tudo é permitido."

a visão de que não existe uma moral natural e que, portanto, nenhuma ação é preferível à outra é um dos pressupostos do livro.

a morte do sentido niilista também está fortemente presente e, aqui, cito a mim mesmo:

se em algum mísero instante você puder contemplar o quão exatamente todos os valores que o rodeiam são infinitamente artificiais, então experimentará a divina percepção da mediocridade de tudo, da total ausência de sentido em quaisquer metáforas e da necessidade visceral de ser selvagemente abatido por algo de real: sua mente enfim será libertada e, ainda que encarcerado fisicamente, você será o mais feliz dos mortais ao distinguir-se completamente do todo e ao fazer-se capaz de orientar todos os seus esforços pra vivenciar os únicos momentos sinceros de toda a sua vida, fim último da existência

talvez, a coisa mais interessante de O Homem dos Dados seja o conceito que podemos ser várias pessoas e entreter vários lados de nossas personalidades.

A História

Luke Rhinehart é um tipicamente entediado psiquiatra em um tipicamente infeliz casamento, vivendo uma vida de quieto desespero. seus colegas vêem sua mesmice como comum - inevitável, na verdade, para um homem de meia idade. seus pacientes nunca pareciam melhorar. Luke cogitou suícidio, dedicou-se a estudar o Zen, mas, não importa o que fizesse, sentia-se como o Caio Fernando de Abreu em Morangos Mofados:

"Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê?"

ao final de uma festa na sua casa, Rhinehart toma uma decisão que muda a sua vida inteira, baseando-se no rolar de um Dado. a partir desse momento, a personagem embarca num experimento psico-filosófico no qual os números de um dado são usados para ditar as ações (muitas vezes obscenas) a serem tomadas na sua vida. funciona da seguinte maneira: cada vez que se quer tomar uma decisão, associa-se as possibilidades a números e lança-se o dado. Luke gradualmente integra o Dado em todos os aspectos de sua vida - e sua obsessão acaba transformando-se em um dilema filosófico.

A Minha História

contagiado pela leitura de O Homem dos Dados e com a ideia de largar tudo e viver na aleatoriedade (coisa que ainda me comove, digamos, muito), decidi fazer um experimento que muito se assemelha com o evento que desencadeou a introdução do Dado na vida de Luke.

uma vez, fomos eu e um grupo de amigos para a Fazenda (a mesma do post do Will de 18 de janeiro), além de um casal, desconhecido da maior parte dos viajantes. não levou 1 minuto até que todos os homens da viagem ficassem embasbacados com a mulher comprometida: linda, simpática, inteligente, gostosa, culta, interessante... depois de dois dias em que só havia um assunto enquanto ela não estava por perto, cogitei a ideia (nem um pouco nobre) de me livrar da sensação de que o pior fracasso é quando você nem ao menos tenta. como agir dessa forma não é moralmente aceito, a probabilidade de eu me dar mal era quase de 100% e, principalmente, eu estava louco pra brincar de Dado, reuni a galera, and I made my call: "jogo o dado e, se cair o 6, eu chego nela". vocês bem podem imaginar o espanto geral quando Dionísio colocou a face 6 estampada pra cima bem no meio da mesa. mesmo com os Deuses ao meu lado, fui ainda desacreditado: não sabiam eles que não se desobedece o Dado. chegado o momento fatídico, me surpreendi com a sua reação: ficou completamente dividida entre o que ela queria fazer e o que ela tinha que fazer. foi nesse momento que tomei a decisão errada (o que provavelmente não teria acontecido se tivesse perguntado ao Dado): ao invés de beijá-la, optei por trocar emails, evitando que se sentisse culpada e acenando para a possibilidade de uma aproximação menos fugaz. o restante do feriado foi constantemente entrecortado por trocas de olhares, e a comunicação seguiu pelas duas semanas seguintes via correio eletrônico. ao fim de muita hesitação, sua decisão foi a cômoda: ela não pôs fim ao seu namoro. se ela tivesse uma memória física de mim, penso que as coisas poderiam ter sido diferentes. me fudi: fiquei super apaixonado por um bom tempo.

A Religião

o Homem dos Dados funda uma religião onde a aleatoriedade é a Divindade. ainda que muitos acreditem no determinismo, como o filósofo e matemático francês Laplace,

"Nós podemos tomar o estado presente do universo como o efeito do seu passado e a causa do seu futuro. Um intelecto que, em dado momento, conhecesse todas as forças que dirigem a natureza e todas as posições de todos os itens dos quais a natureza é composta, se este intelecto também fosse vasto o suficiente para analisar essas informações, compreenderia numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do menor átomo; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, seria presente perante seus olhos."

o relevante aqui é que ninguém discorda que, pelo menos até onde a nossa inteligência alcança, o comportamento do Universo é aleatório. para quem se interessa em como a aleatoriedade afeta a nossa vida cotidiana, recomendo a leitura de O Andar do Bêbado, de Leonard Mlodinow.

O Homem dos Dados faz uma paródia ao Salmo 22:

"O Dado é o meu pastor; nada me faltará.
Deitar-me faz em verdes pastos, e eu me deito;
Guia-me a águas tranqüilas, e eu nado.
Destrói a minha alma;
Guia-me pelas veredas da justiça.
Por amor à causalidade.
Sim, ainda que andasse pelo vale da sombra da morte,
Não temeria o mal, pois o Acaso está comigo.
Teus dois cubos sagrados me consolam.
Preparas uma mesa para mim
Na presença dos meus inimigos.
Unges a minha cabeça com óleo,
O meu cálice transborda.
Certamente a bondade e a misericórdia e o mal e a crueldade
Me seguirão
Todos os dias da minha vida:
E habitarei para sempre na casa do Acaso."

O Porém

a aleatoriedade é comprometida no livro pelo fato que o próprio Luke é quem decide as opções do dado - mesmo ele estando ciente disso e procurando sempre incluir pelo menos uma opção que o desagrade muito.

fico pensando.. e se outra pessoa escolhesse as opções do Dado?

ou: será que Luke iria gostar da dominação psicológica do BDSM?

ou ainda: e se existisse um Livro que contivesse todas as possibilidades de ações, além de uma maneira de acessá-las através do Dado? nesse caso teríamos o perfeito estado da aleatoriedade!

O Absurdo Normal

O Homem dos Dados propõe que nós dêmos a oportunidade de todos os nossos caprichos aflorarem. e não são justamente esses sentimentos reprimidos os mais verdadeiros, os mais representativos de nós mesmos? por isso sou aficcionado por excentricidades, particularidades, singularidades, subjetividades, peculiaridades e arbitrariedades, uma vez que reconheço sinceridade na diferença. numa sociedade em que quase tudo é fachada, nada é mais belo que a Verdade

o seu Absurdo
parece-me tão normal
quanto o seu Normal
soa-me um completo absurdo

qualquer pessoa ou situação tem algo de Verdadeiro para me acrescentar.. eu gosto de acreditar nisso.

Um comentário:

  1. é difícil achá-lo em livrarias.. outro dia queria dá-lo de presente e tive que encomendar na Saraiva.. e parece que só tinham uns 3 em estoque no Brasil inteiro

    talvez em outra livraria, não procurei

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