quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Decamerão

 "Decameron" é uma coleção de cem novelas escritas por Giovanni Boccaccio entre 1348 e 1353. Na obra, dez jovens (sete moças e três rapazes), refugiaram-se em um castelo para fugir da peste negra que assolava a Europa. Para ocupar-se, cada um dos personagens contou uma história em cada uma das dez jornadas. As histórias abrangem as mais peculiares paixões e comportamentos humanos , e mantém em viva presença , os "clamores da carne", a infidelidade e as trapaças sexuais . A obra tem a propriedade de revelar em cada conto que o proibido e o pecaminoso vigiados pelas autoridades no final da Idade Média , concretizavam-se em práticas habituais no dia-a-dia das pessoas comuns , do clero e da nobreza.


Me lembrou um pouco o 120 Dias de Sodoma.

A história a seguir é a quarta da primeira jornada, contada por Dionéio.

O monge viu uma jovem lindíssima, filha, talvez, de algum dos lavradores da região. A jovem estava apanhando algumas ervas nos campos. Assim que o monge a viu, sentiu-se acometido pelo interesse carnal. Por esta razão, acercou-se mais da jovem e travou conversa com ela. E tanto saltou de uma palavra a outra, que terminou por firmar um acordo com ela. Por esse acordo firmado, levou-a à sua cela, sem que ninguém o percebesse. Instigado por um desejo excessivo, brincou com ela, e de um modo menos cauteloso do que seria conveniente.

Sucedeu que o abade do mosteiro, deixando a sua cama, onde dormira, e passando, sem fazer ruído, em frente à sala do tal monge, escutou a barulheira que ele e a moça faziam. Para identificar mais precisamente as vozes o abade chegou bem próximo à porta da cela. Notou sem nenhuma dúvida, que havia uma mulher lá dentro. Sentiu-se tentado a ordenar que se abrisse a porta. Entretanto, pouco depois, julgou que seria mais conveniente agir de outro modo, em semelhante caso. Retornou ao seu quarto e aguardou que o monge deixasse a cela.

Apesar de ocupado com a jovem, e ainda que gozasse enorme prazer, o monge não deixou de desconfiar de algo; a certa altura, tivera a impressão de ouvir um arrastar de pés, pela ala dos quartos de dormir. Por essa razão, olhou através de pequeno orifício e viu que o abade ali estava, escutando. Entendeu, perfeitamente, que o abade devia saber que a jovem estava em sua companhia. Reconhecendo que, por essa razão, seria punido com grave castigo, mostrou-se profundamente aborrecido. Contudo, sem deixar que a moça percebesse a sua contrariedade, buscou em sua mente algo que o auxiliasse a escapulir daquela enrascada. Finalmente, ocorreu-lhe uma artimanha, que calhava bem a esse fim. Daí, fingindo já ter ficado o suficiente em companhia da jovem, disse-lhe:

- Quero achar uma maneira de você sair daqui de dentro sem que a vejam; assim sendo, fique aqui mesmo, calmamente, até que eu regresse.

Deixou a cela e trancou a porta com a chave. Encaminhou-se diretamente para a cela do abade, dando-lhe a chave, conforme a tradição, quando se ausentava do mosteiro. Disse, então, com expressão tranqüila e amiga:

- Senhor abade, não pude, esta manhã, ordenar que trouxessem ao mosteiro toda a lenha que pude arranjar; por esta razão, com sua permissão, desejo ir ao bosque, para mandar que a tragam.

O abade, desejando informar-se por completo com relação à falta praticada pelo monge, ficou satisfeito com o seu modo de agir. Recebeu a chave e deu ao monge permissão para ir ao bosque. Ficou convencido, como se percebe, de que o monge nada sabia do fato de ele, abade, ter ficado escutando à porta de sua própria cela.

Bastou o monge se retirar, o abade procurou resolver o que seria mais certo fazer, primeiramente: abrir-lhe a cela, na presença de todos os monges do mosteiro, para que ninguém pudesse apresentar razões de queixa contra ele, no momento em que pela sua autoridade abacial castigasse o monge pecador, ou escutar, primeiro, da jovem mesma, a sós, como se passara o caso. Cogitando, entretanto, que a jovem pudesse ser esposa ou filha de algum homem que ele não gostaria de fazer passar por essa vergonha, decidiu que o melhor seria tratar, primeiramente, de saber quem era aquela moça para depois resolver o que faria. Silenciosamente, dirigiu-se para a cela do monge; abriu a porta; entrou e fechou-a por dentro, naturalmente. Vendo entrar o abade, a moça ficou desconcertada. Cheia de vergonha e de medo, pôs-se a chorar. O senhor abade olhou-a por muito tempo; vendo-a tão bela e sensual, sentiu inesperadamente, ainda que um tanto idoso, os apelos da carne. Eram apelos não menos ardentes do que aqueles que sentira o jovem monge. E a si mesmo começou a dizer:

- Enfim, que razão há para que eu deixe de desfrutar um prazer, quando posso desfrutá-lo, se, por outro lado, os aborrecimentos e os tédios estão sempre preparados para que eu os prove, queira ou não? Aí está uma bela moça, sem que nenhuma pessoa no mundo saiba disso. Se posso fazer com que me proporcione os prazeres pelos quais anseio, não existe nenhuma razão para que eu não a induza. Quem é que virá a saber disto? Ninguém nunca o saberá! Pecado oculto é pecado meio perdoado. Um acaso destes quiçá jamais venha a se verificar de novo. Julgo ser conduta acertada colher o bem que Deus Nosso Senhor nos envia.

Assim refletindo, e tendo modificado inteiramente o propósito pelo qual fora até ali, acercou-se mais da moça. Com voz melíflua, pôs-se a confortá-la e a pedir, com instância, que não chorasse. Palavra puxa palavra, até que ele chegou ao ponto de poder evidenciar à moça o seu desejo. A jovem, que não era construída de ferro nem de diamante, atendeu, muito cômoda e amavelmente aos prazeres do abade. O padre abraçou-a, beijou-a muitas vezes, seguidamente, atirou-se com ela na cama do monge. Seja por enorme consideração, ou ao venerável peso de sua própria dignidade, ou pela idade tenra da jovem - seja, então por recear causar-lhe mal, pelo seu excessivo peso -, o abade não se pôs sobre o peito da moça. Antes, colocou-a sobre o seu próprio peito. E, durante muito tempo, entreteve-se com ela.

O monge, que havia fingido ir ao bosque, mas que, na verdade, escondera-se na ala dos dormitórios, viu quando o abade entrou em sua cela. Assim, completamente tranqüilo, compreendeu que seu plano dera resultado, ao perceber que o abade trancara a porta por dentro. Deixando o seu esconderijo, silenciosamente foi até o orifício da fechadura, através do qual viu e ouviu o que o abade fez e disse.

Quando pareceu ao abade que já se demorara o bastante em companhia da jovem, deixou-a trancada na cela, e retornou ao seu quarto. Passado algum tempo, ouvindo que o monge chegava, e pensando que ele regressasse do bosque , decidiu censurá-lo e mandar que o prendessem no cárcere ; assim procedendo, pretendia ficar sozinho na posse da presa conquistada. Ordenou, portanto, que o monge viesse à sua presença. Com o rosto severo e com graves palavras, censurou-o, mandando que fosse conduzido ao cárcere. O monge, sem nenhuma hesitação, retrucou:

- Senhor abade, não estou, ainda, há tempo bastante na Ordem de São Bento para conhecer todas as singularidades de sua disciplina. O senhor não me mostrara ainda que os monges precisam fazer-se mortificar pelas mulheres, assim como devem fazê-lo com jejuns e vigílias; agora, contudo, que o senhor acaba de mo demonstrar, prometo-lhe, se me conceder o perdão por esta vez, que nunca mais pecarei por esta forma; ao contrário, procederei sempre como vi o senhor fazer.

O abade, como homem astuto que era, reconheceu logo que o monge não só conseguira saber a seu respeito muito além do que o suposto, mas ainda ver quanto ele fizera. Por esta razão, sentiu remorsos pela sua própria culpa; e ficou vexado de aplicar ao monge o castigo que ele, tanto quanto o seu subordinado, merecera. Deu-lhe o perdão, mas impôs-lhe silêncio sobre quanto vira. Depois, levaram ambos a moça para fora do mosteiro; e, mais tarde, como é fácil de se presumir, inúmeras vezes a fizeram retornar ali.

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